(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

10.3.14

Redesenhar o mundo

Redesenhar o mundo

- Sempre vens tomar café?
- Claro. Demoro vinte minutos a chegar, esperas por mim?
- Yes!
Cheguei vinte e um minutos depois. Ele já andava há um mês para se ir embora e eu obrigara-o a prometer que pararia em Altura para se despedir de mim.
Na sua maneira caricata de falar inglês, com aquela pronúncia alemã, explicou-me as rotas e paragens que planeia para os próximos tempos.
- Então vai ser demorada, a tua viagem de regresso a casa!
- Depende do que tu estás a entender por minha casa.- sorriu misterioso. - Ela não é longe daqui, a minha casa é Faro...

Ontem tive uma birra tão grande que durou até hoje. Entre os inúmeros planos de ano novo, eu tinha decidido, entre muitas outras coisas, escrever para a Vogue e publicar (pelo menos) o "Olho Ubíquo" com uma grande editora. Aparentemente a minha escrita não tem o registo jornalístico e especializado em moda que pretendem nessa revista. Compreendo. Na Elle não têm espaço. Entendido. Respostas das editoras, nem vê-las. Muito bem. Mas fiz birra. Daquelas grandes, típicas dos insuportáveis miúdos que costumam ter tudo o que querem.
"Vou tirar umas férias da escrita e desta luta por tentar fazer chegar ao grande público o meu trabalho!", "Preciso de me libertar um pouco disto.", "Serei escritodependente? Isto é um vício? Uma necessidade? O quê?", "Amanhã não escrevo, pronto!"

Olhei de novo para a mota do Ralf, à chuva, carregada com os seus pertences. Olhei enternecida para as suas barbas de velho lobo da estrada e lembrei-me de algo que ontem escrevi e que muitas pessoas insistiram em citar várias vezes: "O mundo só faz sentido se houver um cantinho de afetos que é nosso."
Voltei dos meus pensamentos com algo que ele me disse.
- Tirei-te fotografias em que a tua expressão é a de quem está a pensar em redesenhar o mundo. - Estavamos a falar de fotografia e na forma como nelas nos revelamos.
- Desculpa? Repete lá.
- Disse que em algumas fotografias tens a cara de quem planeia redesenhar o mundo.
Sim, eu ouvira bem.

Vi-o partir à chuva, naquela Triumph toca carregada, para se fazer aos caminhos do seu mundo pessoal. E vim-me embora a pensar que não escrevo por vício nem por necessidade. Não escrevo por nenhuma obstinada teimosia nem para provar nada a ninguém. Escrevo como quem respira e para conversar comigo. Como poderia, por isso, embirrar em não escrever? Que parvoíce tão grande essa de suster a respiração ao pensamento, como se fosse possível caminhar de costas voltadas a nós mesmos.
Sentei-me depressa perante o ecrã em branco. Que se danem as portas que insistem em permanecer fechadas. Tenho-vos aqui: a cada uma das vossas preciosas presenças! E, enquanto me tiver também a mim, continuarei a redesenhar o mundo com as palavras que respiro.

Ana Amorim Dias

Sem comentários:

Enviar um comentário