(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

27.9.11

Legados

    Enquanto vejo um álbum de fotos antigo, descubro sensações inéditas. Um álbum só com fotografias a preto e branco,  de todas as formas e tamanhos (algumas tão minúsculas que nem de lupa se decifram), povoadas de antepassados conhecidos e desconhecidos a saltitar alegremente entre festas e soneles ocasiões…   Admiro aquela profusão de rostos  que já se foram, de pessoas que nunca vou poder dizer que conheci … nunca tive o privilégio…
 E viajo no tempo até aos séculos passados: páro num tempo tão diferente quanto diferentes os locais onde os acontecimentos se desenrolavam. Visito os meus pais, ainda crianças, ao colo dos seus. Vejo os meus avós ainda jovens, no esplendor das suas conquistas e acabo por chegar ao limiar do tempo de que ainda sobram registos, por altura dos casamentos de todos os meus bisavós… 
   E a minha mãe vai narrando, na sua voz suave e doce, quem é pai de quem, irmão e primo de quem… Vai-me contando histórias que não quero que se percam no devir das histórias sem estórias…. Vai-me falando sobre o bisavô sevilhano e sobre o outro de Coimbra; do que foi médico e do que escrevia crónicas nos jornais (deve ser a esse que fui buscar a veia…) Fala-me do outro que era presidente de um clube de futebol e do que deixou estátuas em várias cidades do país e até no ultramar. Fala do que criou a escola técnica não sei  de onde e do avô que aparece em fotos a apertar a mão do presidente Craveiro Lopes em inaugurações de grandes obras que ele próprio erigiu. E continuo a olhar para aquele  álbum, precioso tesouro, siderada de prazer,  enquanto a minha mãe me  vai mostrando como se vivia então:  os vestidos, as festas, os olhares cúmplices e as visitas às pirâmides do Egipto e ao coliseu de Roma; os safaris com leões, macacos e elefantes.  Mostra-me ainda os aviões que o meu pai pilotava e as casas avant garde que a minha avó construía para depois vender; as primeiras touradas na grandiosa praça de touros de Lourenço Marques, cuja construção esteve a cargo do meu avô. Também olho, enternecida,  para fotografias da minha mãe  com faixas de princesa, porte de raínha e uma cintura de vespa…
  E de repente sinto um orgulho enorme a  abater-se sobre mim com a força de um legado. Um orgulho bem diferente daquele que se tem com o sucesso dos filhos ou com a nova casa comprada:  um orgulho distinto de todos os que já senti; algo mais visceral, que sei que  carrego em cada célula e habita no meu ser como parte de mim mesma…. E é então que me revejo em todo o meu esplendor de património genético …
   Páro numa fotografia que me prende mais que as outras: os pais da minha mãe num baile, altos, lindos, apaixonados: como dois puros sangues a ser olhados com olhares de admiração por todos os outros presentes. Guardo a imagem em mim, como se guarda a cena de um filme ( ele um Hunfrey Bogart e ela uma Meryl Streep, mais muito, muito mais bonitos…)… gravo a imagem para sempre,  como para sempre sei ter, gravado em  mim, o legado que carrego.
Ana Dias

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