(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

28.6.12

O culpado


   As constipações de Verão são lixadas. Uma pessoa passa a noite sem  poder ligar o ar condicionado, com a garganta seca e o nariz totalmente entupido.  Ouvem-se os barulhinhos todos. Os que soam e os que apenas imaginamos.  Contamos as pintinhas da parede, as canas do teto e percebemos que o pó já se instalou de novo sobre os móveis, ainda há pouco tempo limpos.
   Depois lá se dormita um bocadinho. Um sono leve e inquieto que não premeia o descanso. Três e um quarto. Gotas para o nariz. Quatro e vinte. Uma volta pela casa. Seis da manhã. Duas assoadelas. Sete e pouco. Mais um fechar de olhos. Pondero ficar de cama, mas nem o trabalho o permite, nem a cama me cura. Sei que quando o telefone soar, como o galo da manhã, me vou levantar, sacudir a gripalhada e avançar para o dia a fingir que não é nada. Entretanto penso. Escrevo com o pensamento. Lembro-me do Ford Cortina amarelo, o carro da minha vida. Tenho que lhe prestar um tributo. Será hoje? Penso num dos senhores que ajudou a contruir a piscina da casa de campo dos meus pais. Porque me lembrei dele? Recordo os incontáveis postais com pedidos de clemência, que o meu pai certo dia mandou ( não sei para onde pois era apenas uma criança) para salvar a vida de um condenado à morte.
   O sono vai e vem, o nariz entope e volta a desentupir. Lenços ranhosos e pensamentos errantes. E se o ranho me vai para o cérebro? Escreverei uma crónica ranhosa? Rio-me de mim para comigo. Consigo divertir-me bastante, mesmo em noites mal dormidas.
  Devo ter adormecido de novo porque acordo com o soar do toque do despertar… e com um pensamento sublime: é quando nos conformamos com certas perdas que vimos a descobrir que afinal nada perdemos.
Nota: se não encontrarem grande sentido nestas sentidas palavras, talvez seja culpa do ranho!
Ana Amorim Dias