Depois de negociações calorosas com os miúdos para os convencer a levar capacete, lá ganho a batalha, consolada com a pequena noção de segurança que as suas protegidas cabeças me dão. E, enquanto descem as primeiras pistas disparados à minha frente, penso que mesmo que partam algum membro, o principal está salvaguardado.
O Tom desce ao seu ritmo, com a desenvoltura de quem o fez toda a vida, mas o bandido do João quer sempre chegar primeiro e tira-me da razão quando vejo aquela mancha amarelo mostarda disparada como um tiro. E então percebo que me esqueço do meu próprio prazer; esqueço-me de ver as nuvens abaixo de mim a acariciar os outros cumes da paisagem; esqueço-me de sentir a força do ar da montanha a entrar-me nos pulmões e do deslizar suave dos skis contra a neve.
Ninguém se estreia por si mesmo nestas andanças: vamos sempre levados por alguém que já se apaixonou pela neve. E enquanto deslizo, com um olho nos filhos e outro no caminho a seguir, procuro pela minha paixão. Afinal sou ou não apaixonada pela neve, pela montanha e pelo ski? Faço descidas e mais descidas em busca de uma resposta. Será isto um sucedâneo do amor, que envolve prazer e dor, medo e emoção? Será isto como uma lição de vida, que nos mostra de que fibra somos feitos?
O dia de ski chega ao fim e respiro de alívio por estarmos todos inteiros. Ao deixar para trás a montanha concluo que me ensina sempre algo novo. E desta vez percebi que o seu desafio é uma alegoria aos desafios da vida: como uma dor de canelas que nos fica de uma alma um pouco mais sábia. Já no que diz respeito à paixão... bem, tenho que lá voltar outra vez, como sempre volto apesar do atrito.
Ana Amorim Dias
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