Se algum dia me virem por aí e eu estiver parada na rua, com a cabeça enfiada na mala, à procura das chaves, isso só pode estar a acontecer por duas razões: ou estou mesmo a procurar as chaves ou estou a disfarçar o caso enquanto oiço alguma conversa inspiradora.
Ontem de manhã aconteceu a segunda versão.
- … ela já tinha noventa e seis anos mas até nunca foi de grandes doenças… - Dizia uma senhora de idade a outra.
- Pobrezinha. Vá lá que teve quem olhasse por ela, nós se calhar não teremos essa sorte… -
- É a vida… - Tornou a primeira.
E, de repente, a vozinha infantil do pirralho que as acompanhava, soou: - A vida é uma “cuz”! – Exclamou convicto.
Mas a coisa não se ficou por ali porque as senhoras foram prontas no apoio da afirmação.
- Pois, meu querido, e todos a carregamos desde que nascemos! –
- E ás vezes é bem pesada! – secundou a outra.
Nesse momento afastei-me. Já sabia que me tinham traumatizado por um bom tempo! Passei o resto do dia a repedir “uma cuz… a vida é uma cuz!” Não sei se fiquei mais escandalizada por ouvir um miúdo, que nem três anos devia ter, a proferir tal obscenidade ou por o terem apoiado com tão veemente convicção. Quem é que, no seu juízo perfeito, incute tal falácia num ser que devia ainda viver no paraíso sagrado da existência? Como é que pode corromper assim uma infância?
De tanto repetir que a vida é uma “cuz”, percebi que teria de escrever sobre o tema, para o exorcizar de mim.
A vida é mesmo uma “cuz” ou somos nós que assim a vemos? Todos temos que carregar a tal pesada “cuz” ou podemos escolher fazer com que seja de esferovite ou transportá-la num atrelado? Se Jesus teve que enfrentar a “cuz” por nós, porque raios temos que a continuar a carregar?
O assunto é delicado, mas penso que se resolve com um golpe de perspetiva. Se olharmos para as dificuldades e dores das nossas vidas como uma cruz que estamos condenados a carregar, é nisso mesmo que se transformam. Mas se os virmos como uma fonte de oportunidades, fortalecimentos, aprendizagens e aperfeiçoamentos, as tais cruzes nada mais são que o complemento vitamínico da nossa sabedoria.
Uma coisa é certa ( e isto percebi-o esta manhã enquanto, com canções de rimas inventadas, fiz os meus filhos rirem à gargalhada todo o caminho para a escola) jamais a uma criança deve ser dito que a vida é uma “cuz”!
Ana Amorim Dias
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