(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

25.10.12

Espuma



   Coloco duas moedas na ranhura. Viro o ponteiro para a primeira fase. Carrego no “start” e a água inicia o seu trajeto entre a agulheta e o carro.  Revejo mentalmente a lista do que queria ter preparado. A casa impecavelmente arranjada. Confere. O frigorífico repleto das coisas mais importantes. Confere. A verificação da hora de chegada do combóio que os trás. Confere.
  “Não me posso atrasar!” – Penso.  Detesto atrasos. Mais os meus que os alheios.  “A falta de pontualidade é, para mim,  uma das mais incomodativas e gritantes faltas de formação que alguém pode ter. Ainda bem que sou pontual!”.  Os pensamentos vão voando, velozes, enquanto, em piloto automático, aponto  a agulheta ao carro. 
  Faço planos. Mais dez minutos para chegar ao café. Meia hora para a crónica. Uma hora para chegar a Faro nas calmas e esperar pelo Alfa Pendular que embala  as melhores visitas com quem poderia querer privar durante os próximos dias.  Aponto a água quente para  o vidro da frente. “ Credo,  que encardido…”.  
   “E o que vou escrever hoje?”.  Divago. A água pára. Coloco mais uma moeda e continuo. Lembro-me de uma parábola que ouvia nas missas da minha infância: a diferença entre quem se desdobrava em salamaleques para receber Jesus em casa, não lhe prestando qualquer atenção, e quem o recebia sem limpar a casa nem preparar a comida, de tão compenetrado que estava em concentrar  toda a atenção na própria visita.   Viro o ponteiro para o “enxaguar” e ponho mais uma moeda, completamente desatenta ao que ali estou a fazer.
  “Vou pela via do infante ou pela nacional? Bem… já se vê.” Imagino os dias felizes que me esperam na companhia da minha mãe, da Micá e do Vítor. E a porcaria da água acaba-se de novo! O lado esquerdo do carro ainda está cheio de espuma. O stock de  moedas chegou ao fim e o senhor do Elefante ainda não chegou para trocar mais. Olho para a agulheta e para o carro. Volto a olhar e a ponderar as hipóteses.
   Sigo caminho. Pode ser que chova mais um pouco e a espuma se vá.  A parte boa do espumante episódio  é já  saber  o que vou escrever. Às vezes, quando fazemos coisas completamente alheados do que estamos a fazer, elas correm menos bem. Mas isso pode muito bem querer dizer que, simultaneamente, estamos a dar forma a  outras coisas muito mais importantes.
  E agora já me vou. Chegar atrasada é algo em que nem posso ponderar.
Ana Amorim Dias

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