Coloco duas moedas na ranhura. Viro o ponteiro para a primeira fase. Carrego no “start” e a água inicia o seu trajeto entre a agulheta e o carro. Revejo mentalmente a lista do que queria ter preparado. A casa impecavelmente arranjada. Confere. O frigorífico repleto das coisas mais importantes. Confere. A verificação da hora de chegada do combóio que os trás. Confere.
“Não me posso atrasar!” – Penso. Detesto atrasos. Mais os meus que os alheios. “A falta de pontualidade é, para mim, uma das mais incomodativas e gritantes faltas de formação que alguém pode ter. Ainda bem que sou pontual!”. Os pensamentos vão voando, velozes, enquanto, em piloto automático, aponto a agulheta ao carro.
Faço planos. Mais dez minutos para chegar ao café. Meia hora para a crónica. Uma hora para chegar a Faro nas calmas e esperar pelo Alfa Pendular que embala as melhores visitas com quem poderia querer privar durante os próximos dias. Aponto a água quente para o vidro da frente. “ Credo, que encardido…”.
“E o que vou escrever hoje?”. Divago. A água pára. Coloco mais uma moeda e continuo. Lembro-me de uma parábola que ouvia nas missas da minha infância: a diferença entre quem se desdobrava em salamaleques para receber Jesus em casa, não lhe prestando qualquer atenção, e quem o recebia sem limpar a casa nem preparar a comida, de tão compenetrado que estava em concentrar toda a atenção na própria visita. Viro o ponteiro para o “enxaguar” e ponho mais uma moeda, completamente desatenta ao que ali estou a fazer.
“Vou pela via do infante ou pela nacional? Bem… já se vê.” Imagino os dias felizes que me esperam na companhia da minha mãe, da Micá e do Vítor. E a porcaria da água acaba-se de novo! O lado esquerdo do carro ainda está cheio de espuma. O stock de moedas chegou ao fim e o senhor do Elefante ainda não chegou para trocar mais. Olho para a agulheta e para o carro. Volto a olhar e a ponderar as hipóteses.
Sigo caminho. Pode ser que chova mais um pouco e a espuma se vá. A parte boa do espumante episódio é já saber o que vou escrever. Às vezes, quando fazemos coisas completamente alheados do que estamos a fazer, elas correm menos bem. Mas isso pode muito bem querer dizer que, simultaneamente, estamos a dar forma a outras coisas muito mais importantes.
E agora já me vou. Chegar atrasada é algo em que nem posso ponderar.
Ana Amorim Dias
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