(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

16.9.12

O sumo da memória




     A menina atravessava o pomar todas as tardes. Caminhava pelo carreiro ensolarado e chegava em poucos minutos à casa da sua amiga. Sentavam-se no poial  de  pedra e cal  e  olhavam o campo enquanto contavam a vida uma à outra. O sol ia sulcando o céu e a menina ia seguindo a esteira das sombras, embalada pela companhia serena e fácil daquela amizade insuspeita…
  Hoje debati-me entre a vontade de continuar a ronronar nos lençóis ou ir ajudar uma amiga a fazer vinho. A Dona Irene, mulher forte do campo,  caminha manca e curvada pelo peso dos anos e de uma vida inteira de trabalho. Há dias confessei-lhe o meu desejo de relembrar como se faz o vinho caseiro. Convidou-me para lá ir esta manhã. Logo nesta manhã em  que,  já sabia, acordaria cansada.
  - Vá lá Ana, levanta-te… sabes que algo te espera! – Disse a mim mesma para me desagarrar do colchão.
E lá fui. Vi, perguntei, cheirei, senti.   Despejei  o mosto na prensa. Rodei. Rodei. Relembrei. Reaprendi.  Fotografei, claro. Como não? E vim-me embora mais rica. Venho sempre mais rica de todo o sítio onde vou. Enriquece-me sempre tudo aquilo que faço.
 E já no carro, como o líquido opaco e escuro que a prensa fez desprender, também uma memória  antiga, perdida nos confins do meu ser, se desagarrou das entranhas e voltou de novo à luz.
  A amiga com quem eu ia ter,  nas tardes dos meus Verões infantis, chama-se Emília. E eu dava-lhe a mão. A mesma mão que hoje rodou a prensa que desagarrou o sumo e trouxe à memória a lembrança daquelas tardes sem fim. Eu dava-lhe a mão de menina e sentia a sua mão de anciã. A Dona Emília tinha mais setenta anos que eu. Sim, pelo menos setenta. Vestia sempre de preto e andava curvada, amparada por uma bengala que era também os seus olhos.  Lembro-me que lhe descrevia o céu, as árvores e os insetos que pousavam perto. Descrevia-lhe tudo. O que via e o que imaginava ver.  Sei que usava as palavras para que ela pudesse ver de novo enquanto lhe segurava a mão. A mão sábia de anciã. E ela ria-se feliz com tudo o que eu lhe trazia. E eu só lhe trazia a  voz. E a minha mão na mão dela.
  Hoje fui rodar a prensa e ajudar uma amiga a fazer vinho caseiro. Mas a recompensa não foi a memória que me iluminou a manhã.  O mais sublime bálsamo foi perceber o valor verdadeiro que todas aquelas tardes tiveram na vida da doce Emília.   Na minha inocência de criança nunca o cheguei a saber.
  Por agora resta-me aguardar que a pipa faça o resto do trabalho, mas tenho a certeza que quando o provar, o meu mais sentido brinde irá para uma antiga amiga que via com as minhas palavras.
Ana Amorim Dias

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