Descasco as batatas. Corto-as em palitos bem finos. Não tenho a certeza se gosto mais de as comer ou preparar. Há algo de relaxante, quase poético, nestas cerimónias de preparação de uma mera refeição. Talvez seja da ampla vista bucólica que a janela da cozinha proporciona. Talvez seja do jazz que me acompanha os movimentos certeiros.
Voa-me a mente para uma mensagem: "O teu endereço é um poema", escreveu um amigo com quem troquei moradas para enviarmos livros um ao outro. A frase ficou a bailar-me no espírito, como as batatas nas mãos. Nunca tinha pensado nisso, mas é bom saber que até a minha morada parece um poema.
As batatas estão prontas a saltar para a fritadeira. Viro a atenção para os agriões, que pacientemente lavo, acaricio, preparo.
"A culpa é da Annie...", penso. O primeiro filme que vi no cinema, no fundo da rua, aos seis anos, a sós. Quando cheguei a casa escondi-me atrás das cortinas do quarto e prometi-me solenemente tentar viver uma vida de filme, musicada, poética.
Prossigo com a dança dos agriões, com um olho na paisagem e um ouvido na melodia. Mergulho as batatas no óleo com um sentimento quase épico. "A poesia está em tudo, todos os dias, se assim o entendemos." Sorrio para a fritadeira, fazendo do momento um poema. A morada mais poética é mesmo a que o nosso estado de alma decide construir e habitar.
Ana Amorim Dias
Epílogo
Bem sei que as crónicas não admitem epílogos, mas não resisto:
...Chego à mesa com as batatas fritas e a salada de agriões no preciso instante em que o Ricardo está a chegar com a carne grelhada...poético!
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